sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Presença de papai



Aos seis anos, depois que levamos o mano Edmundo ao Porto, para viajar de lancha e chegar pela Estrada de Ferro de São Paulo ao Rio de Janeiro, cena espetacular em que os parentes dos viajantes acenavam com lenços brancos e choravam pela partida, ao voltarmos não encontrei mais o meu pai. Soube pela mamãe que vovó o havia levado para sua casa, uma vez que estava resfriado.
Tempinho após notei o entra e sai de mamãe e descobri que se desquitaram. Sumiu!
Adulta, era a primeira vez que me hospedava naquela pensão da cidade e Poconé, MT, um sobrado perdido numa rua distante do centro. Se bem que a cidade fosse pequena e do centro até ali desse umas nove ou dez quadras.
Dona Malvina, dona da pensão, fez minha ficha e ao dizer o nome de papai, riu e perguntou-me se seu Nilo ainda estava vivo. Respondi-lhe: - Vivíssimo! Hoje está em Ourinhos, onde mora meu irmão Íbsen, Dorothy (a esposa) e três filhos: Dorothy Filha, Dayse e Íbsen Arruda Filho. O mano, engenheiro agrônomo, tem terras com muitas plantações e papai se embevece com a beleza do cafezal. Ama passar uns tempos por lá!
Ofereceu-me o mesmo quarto onde papai se hospedou por longos anos. Curioso, a porta abria-se em ângulo para a entrada, pois colocaram um guarda-roupa velho ao lado da escada e isso atrapalhava a total abertura da porta. Nem liguei, porque desejava apenas uma cama macia, lençóis limpos e total ausência de pernilongos. Assim que dona Malvina saiu, cheirei o lençol e senti que usava sabão de coco. Os pernilongos não eram poucos. Santo Pai, sou alérgica, como vou dormir neste ambiente? Bem, meu pai viveu aqui e porque não posso? Não faz mal! Fiquei fascinada!
Ao cair da tarde, desci a escada de madeira que estralava e um dos degraus estava rachado. No saguão em que se espalhavam as mesas, vi somente homens, nada de mulher. Escolhi uma das mesas e sentei-me. Um senhor que usava um chapelão branco, bonito, dirigiu-se a mim: - Filha do meu amigo Nilo, hein? Sou fazendeiro, criador de gado, e seu pai, veterinário, era quem vacinava e capava meus bois. Profissional que honrava o diploma que tirou no Km 47! Em homenagem a ele, quero convidá-la para hospedar-se na minha casa. Minha mulher Glória e as filhas Lia e Lourdes vão se alegrar com a sua presença. Por favor! Chamou Pelotão. É meu motorista e vai subir e pegar suas malas. Está bem?
- Por favor! Não quero dar trabalho à sua família. Passarei um mês em Poconé e é largo o tempo para me hospedar na casa de um amigo do meu pai. Fica para outra ocasião, num fim de semana.
- Está bem! Então a senhora vem para a Festa de Nossa Senhora do Carmo, quando a cidade inteira participa das brincadeiras. Combinado?
- Combinado!
Nem me deu seu nome, mas dona Malvina me disse ter o sobrenome de Dorilêo e ser um dos homens mais importantes dali. Destacou que sua casa era uma verdadeira mansão, com dez quartos.
À medida que o dia avançava, crescia em mim enorme ansiedade. Inquietação indefinível. E na hora em que me deitei, sei lá, senti vontade de abrir as janelas. Debrucei-me sobre uma delas e tentava buscar uma resposta para aquele mal-estar que me apoquentava. Do outro lado da rua, v i o amigo do meu pai que me assinalava alguma coisa. Não entendi. Fechei as janelas e voltei a deitar.
Notei as mobílias do quarto. Eram velhas! Em cima do guarda-roupa deixaram um copinho e a colher de prata, certamente para o guaranazinho. A verdade é que não consegui pregar os olhos. Ao clarear, adormeci e só me levantei após as duas horas.
Tomei banho, troquei de roupa e desci. Dona Malvina perguntou-me se ainda gostaria de almoçar, porque a empregada esquentaria a comida.
- Obrigada! Prefiro um chão de erva cidreira.
Logo, a mocinha trouxe-me um bule de chá e uma bela xícara de porcelana, com um pratinho de torradas.
Tomei a pequenos goles o chá, já que estava muito quente. Mastiguei as gostosas torradas.
Em conversa com a dona da pensão, contei-lhe que sobre o guarda-roupa alguém esquecera um copinho e a colher de guaraná.
Deu uma gargalhada e exclamou: Como é pequeno este mundo! Eram do seu pai, que tomava guaranazinho de madrugada para não fazer barulho ao descer a escada, deixava o vidro de guaraná em cima do guarda-roupa, bem como o copinho e a colher de prata. Sabe que essa colher foi da mãe dele, dona Adelina, sua avó? Ele me contou que era de grande estima. Nem sei como foi esquecê-los! Mas há de voltar aqui e devolverei a ele ou quer levar?
- Não, dona Malvina, dentro de poucas semanas retornará de Poconé e com certeza há de pegar o que deixou guardado.
Passeei pela cidade e muitos já tiveram conhecimento de que era a filha de Nilo Ponce de Arruda, ainda mais que sou um de seus filhos mais parecidos com ele. Alegremente fui abraçada e carregada a almoçar, comer bolos de arroz e de queijo em diferentes casas. Presentearam-me com uma toalha de mesa de crochê. Enfim, foram dias marcantes que vivi na pensão de dona Malvina e entre os poconeanos. Gente formidável!
A hospedeira teve uma sapituca (mal-estar, chilique) e foi levada de ambulância à Cuiabá. Seu filho contou-me que a mãe sofria do coração. Felizmente, logo voltou, cheia de remédios e uma expressão de alegria.
Na última noite em que passei ali, no jantar, dona Malvina colocou na mesa uma terrina importada de Paris pela sua avó, que é uma tigela de cristal apropriada para servir sopa. Que bela! Tomei sopa de milho verde!
Ao me despedir de todos, ao entrar no ônibus, elevei a voz e disse: Salve! Salve! Salve a cidade de Poconé! Dona Malvina entregou-me um pacote bem feito e amarrado com uma fita vermelha. Agradeci e bisbilhoteira abri ali mesmo. Era a xícara, a colher e o vidro de guaraná. Também tinha uma cartinha onde dizia que era sensitiva e sabia que papai não voltaria à pensão. Já é tempo de prestar conta a Deus!

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