segunda-feira, 22 de agosto de 2011

O copo de guaraná e o ranger da rede



Lélia Rita, filha de ricos fazendeiros, conta-me o acontecimento que a entristeceu e abalou muito, quando era menina de 8 anos.
“Papai, mamãe e meus irmãos cavalgávamos léguas e léguas até alcançar a fazenda de Bernardino, onde por perto havia uma casa abandonada, verdadeira tapera. Ao referir-se a ela, benzia-se três vezes.
Numa tarde, deitado na rede branca bordada de tucanos, a pouco e pouco me contou a história daquela casa, não só abandonada e evitada pelos moradores conhecedores de sua história.
Ali moravam compadre Pacheco e dona Idalina, briguentos como cão e gato. Se ele pedisse uma xícara de mate, lá vinha ela arrastando os chinelos com uma bandeja com café. A mulher era afogueada, faceira, vestia roupas coloridas, usava brincos, pulseiras, colares e anéis em três dedos, o que deixava o marido muito aborrecido. Nem...não... Eram totalmente desiguais e não foram feitos um para o outro. Os xingamentos de ambos ecoavam na mata e os lobos uivavam na madrugada.
Cedinho, na hora em que o sol surgia por cima do morro de Santo Antônio, o próprio seu Pacheco ralava o guaraná, pois dizia que guaranazinho bom é o ralado na hora. Após, punha o pó no copo de cristal, açúcar e água geladinha. Mexia bastante e depois bebia aos poucos e elevava a Nosso Senhor uma prece sem palavras. Olhava para o infinito e suspirava.
A mulher tinha bigode e nem o diabo pode, é de todos conhecido. Vez por outra escondia os paus de guaraná só pra ver o ouvir o banzé que o marido aprontava. No quarto, ria até ter dor de barriga.
Safo, sapecado de raiva, quase teve um infarto. “Aquela sirigaita ainda me paga! Não vou servir de capacho para essa adoidada, tarová mesmo! Tibi de ódio, saia espuma da boca, com vontade de enforcar aquela tirana.
Era sábado e o homem bebeu quase uma garrafa da branquinha. Sentada sozinha no degrau de entrada da casa, ao ver Pacheco chegar aos tropeções, gargalhava e dizia-lhe: “Seu porco! Seu lugar é na pocilga! Nojento! Suma daqui!”
Quando julgou que o marido ia voltar para a Venda do Antero, ele finalmente deu vazão ao ódio acumulado há mais de 20 anos. O fardo pesado seria jogado por terra. Naquele momento, só de camiseta e calça jeans, avançou no pescoço de Idalina. Com as duas mãos apertou, apertou, apertou até ver sua língua de fora. Estava morta. Então passou a chorar como uma criança e correu até o galpão onde guardava o revólver 44, apertou contra o coração e caiu. Morreu!
O cachorro Zelão lambia o sangue que alagava e embebia a terra.
Foi há mais de 70 anos e as gerações de hoje esqueceram esse drama ocorrido nos anos 20. Naquela época os moradores comentavam bastante esse drama, verdadeira loucura, mas depois foram esquecendo.
Contudo, mesmo com o tropé esquecido, o boiadeiro Maneco ao ver a casa abandonada, depois de longa cavalgada, cansado e suado, desceu do cavalo e pensou em dormir ali. O quá! Mal pegou no sono, ouviu barulho de alguém a mexer no copo de guaraná. E ah! Julgou ter outro tropeiro ali. Não viu ninguém. Deitou-se novamente. O ranger de uma rede bateu em seus ouvidos. Que gritaria! Seu cavalo relinchava desesperado. A boiada estourou... Variado, disse vote! Montou a cavalo e chispou dali. Que lugar doido!
Um zagaieiro, morador das redondezas, ao escutar seu relato da noite passada na tapera do Pacheco, exclamou: “Viche, homem de Deus! Ocê é muito home! Ninguém consegue ter sossego naquela tapera. Por essa luz que me lomea, o povo rufa de medo ao passar defronte dali. Chispe!”
E, sob a luz do candieiro, contou a triste história de Pacheco e Idalina, que deixou Maneco de cabelos arrepiados.




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